Entrevista concedida a Claudia Ferraz antes do concerto em Paraty.
Com seu projeto Um piano pela estrada, Arthur Moreira Lima realizou em Paraty o 509º concerto em seu caminhão-teatro. Paraty e Cunha, aliás, encerraram o circuito Estrada Real do projeto, que começou em Diamantina e totalizou vinte apresentações pelas cidades da rota. Com quase duas horas de duração, a apresentação em Paraty emocionou o público – gente de todas as idades que não abriu mão de curtir ao máximo (e em silêncio respeitoso e interessado) o rico repertório (veja no box abaixo) oferecido pelo consagrado pianista, na noite de 15 de outubro último, no arenal do Pontal. Antes de se sentar ao piano, no entanto, Arthur Moreira Lima, como é de praxe em seu projeto, abriu espaço para um músico local. E foi do violonista John Wesley o privilégio de abrir o espetáculo da noite.
Em entrevista exclusiva ao portal paraty.com.br, ele revelou que a semente da idéia de sair pelo Brasil de caminhão para tocar a céu aberto nas cidades nasceu de sua experiência nos anos 1990 como subsecretário estadual de cultura de Darcy Ribeiro, durante o governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro. Essa história ele conta aqui. “Na época, fiz um projeto de levar concertos às cidades. Mas não à capital. O objetivo era percorrer todo o interior do estado. Inventei até um tijolaço cultural para a divulgação, à semelhança dos tijolaços do Brizola na época, aqueles longos artigos publicados por ele na imprensa do Rio. Foram mais de cem concertos. Algumas vezes eu tocava, em outras eram os músicos da cidade, chegamos a levar uma orquestra de câmara de Moscou. Já naquela época havia o desafio do transporte, de chegar e não poder contar com um palco bonito – quase sempre eram muito feios os que nos eram oferecidos, é triste tocar num palco feio. Porque o povo gosta de ver coisa bonita, não gosta de ver coisa feia, não… Então essa experiência de movimento musical me fez pensar que seria mais efetivo chegar com um caminhão que fosse palco, que fizesse tudo ao mesmo tempo. Meus pianos, por exemplo, eu sempre levava dois, eram transportado num caminhãozinho naquele tempo. Foi das reflexões daquela época que me veio a idéia do caminhão, quando fiz meu projeto. Claro, não foi tão simples assim, cheguei também a pensar em ônibus etc. Mas acabei por comprar um Scania em Santa Catarina, em Jaraguá do Sul. Mandei alongar. Fiz tudo com capital próprio. Fiquei muitos meses faturando negativo para pagar o caminhão.
CONHEÇA O CAMINHÃO DO PROJETO UM PIANO NA ESTRADA . Caminhão Scania com baú adaptado para teatro-móvel, com 12 m de comprimento com chassi alongado para atender às especificações do baú (2,60 m de largura X 2,80 m de altura) |
Fizemos já 300 mil km rodados. Daqui a pouco, completaremos aqui em Paraty o concerto de número 509! Percorremos o Brasil inteiro, os 26 estados e o distrito federal. Chegamos a lugares a princípio impensáveis, houve barrancas em que o caminhão não subia de jeito nenhum, chegava gente para ajudar… Subimos em balsas até o Rio Solimões, tocamos em reservas indígenas, em localidades ribeirinhas, em municípios distantes e isolados no Nordeste… E eu não poderia ter feito isso tudo se a Margareth (Margareth Monteiro Garrett, sua mulher) não tivesse ido junto, eu ficaria com muita saudade… Sem contar que ela ajuda muito na minha agenda, na organização dos meus horários, é a companheira que divide comigo as glórias e as chateações. Ela é dentista das mais conhecidas em Florianópolis, tinha uma clientela importantíssima na cidade. Foi aos poucos deixando o consultório para vir comigo nesse projeto.”
Margareth, que esteve ao lado de Arthur durante toda a entrevista, a pedido dele, há 12 anos o acompanha nas viagens. E nas cidades que chegam, ela e sua filha Grasiela, também dentista, oferecem um programa de educação e saúde bucal, com palestras e escovação supervisionada, com apoio de uma cartilha. É um programa dirigido a diferentes públicos em vários ambientes, em especial escolas. “Mas também fizemos recentemente no presídio masculino em São Lourenço, MG. Uma pena não ter feito em nenhuma escola de Paraty, porque hoje é feriado escolar, dia do Professor”, justificou ela.
paraty.com.br – Maestro, você toca e estuda diariamente?
Arthur Moreira Lima – Não, hoje em dia não mais. Estudo e sou disciplinado só quando é preciso. Hoje em dia preciso cada vez menos. Disciplinado, aliás, eu nunca fui. Se fosse, eu estudaria todo dia pela manhã, às 8, 9 horas. Mas não sou assim. Meu horário é ao contrário, acordo às duas da tarde, tomo café às três, e muitas vezes estudo pela madrugada, duas, três horas da manhã…
paraty.com.br — Suas temporadas de estudo fora do Brasil, em que medida foram importantes? Estudar em Viena, em Moscou, por exemplo, como foi essa experiência?
Arthur Moreira Lima – Em Viena não estudei, apenas morei. E em Moscou, se eu não tivesse estudado lá eu não teria “aparecido”. Naquele tempo, anos 1960, era indispensável para fazer carreira estudar com os grandes formadores. Não fui para lá por motivação política, não. Foi motivação cultural mesmo. O conservatório em Moscou era o mais forte do mundo na época. Tanto que eu tinha uma bolsa também para os Estados Unidos e escolhi Moscou. Eu brincava dizendo que tinha optado pela liberdade (risos).
paraty.com.br – Estamos às vésperas das eleições e o tema cultura continua sem luz no debate eleitoral, não aparece nas campanhas. Cultura não dá voto?
Arthur Moreira Lima – Mas sai barato, sabe? O Rafael Greca, que foi prefeito de Curitiba, é um grande incentivador da cultura. Ele diz que se a gente medisse cultura por metro de asfalto iria ver o quanto é barato!
paraty.com.br – Você acha que é pondo a mão na massa que a coisa acontece para valer na área cultural?
Arthur Moreira Lima – Ah é! Não tenho dúvida, é pôr a mão na massa, é sujar a mão, é pegar cadeira… Não carrego piano porque não tenho mais coluna para isso, mas já carreguei muita cadeira e a gente faz de tudo no projeto. Somos camelôs da cultura. Até vender CD no final a gente vende. A Margareth também acompanha, ajuda no que é necessário e, no projeto de saúde bucal arruma cadeiras nos locais, chama as crianças, disciplina os alunos…
paraty.com.br – Um piano pela estrada é um projeto que alia arte, faz a roda da cultura girar e permite a você exercer a cidadania, oferecendo música de altíssima qualidade às populações. Como cidadão você deve se realizar a cada concerto e dormir sem culpa nenhuma (risos)…
Arthur Moreira Lima – Sim, do ponto de vista da cidadania sim. Há também o aspecto de ir aprimorando para solucionar cada vez melhor as necessidades, superar os desafios que não são poucos durante os trajetos. Temos dois caminhões e atualmente gerador próprio. Resolvemos ter desde uma experiência que vivemos numa cidadezinha às margens do Tocantins. Acendemos toda a parafernália de luz do caminhão e isso acabou fazendo cair a luz da cidade. Muitas delas não aguentam a carga, são lugarejos mesmo… Agora a gente carrega o gerador também. Porque é importante fazer, mas fazer o melhor. A platéia não apenas ouve música, ela também vê muito. Porque o caminhão é muito bonito, bem iluminado, hoje temos telão, veja só! É o que eu digo de usar a tecnologia a nosso favor. Demorei um pouco para aprender isso na vida. No começo era um telão alugado, depois compramos, fomos fazendo tudo aos poucos. Essa armação toda de hoje não existia, era mais simples. No entanto tínhamos mais gente viajando. Começamos com vinte e poucos na equipe, passamos para dezessete. Agora a equipe é de doze pessoas, entre motoristas, técnicos de som e piano, produtor etc., todos sabem fazer de tudo. Os meninos são ótimos. Gostam do que fazem, vivem intensamente essa oportunidade de conhecer o próprio país. Precisa ver como eles discutem política com outros motoristas que nunca saíram do sul ou do Rio! Eles foram vendo desde 2003 que uma porção de coisa melhorou pelo interior do País. Em 2002, a gente viu, as estradas eram um horror, hoje a realidade é outra, melhoraram muito. O pessoal está vivendo muito melhor, comendo, se vestindo melhor. Aquelas cidades ribeirinhas da Amazônia, por exemplo, eu não conhecia, pensei que houvesse fome, que fossem muito mais pobres… Você não pensou, hein Margareth? (Margareth – É, quando a gente começou, no circuito das cidades do São Francisco, achávamos que não iríamos comer, amedrontaram a gente de monte, dizendo que não ia ter comida e tal… Levamos muita coisa na bagagem, mas não faltou comida em lugar nenhum. O mais difícil foi a Amazônia por causa do transporte por barco, lá a gente precisava comprar alimentos antes de atravessar e nem sempre tinha muita coisa, dependendo do lugar onde a gente chegava.)
paraty.com.br – E as maiores dificuldades e emoções dessas viagens?…
Arthur Moreira Lima – Ah, tivemos um grande apoio na região da Amazônia. Se não fosse o grande apoio do Exército Brasileiro, não teríamos conseguido fazer os concertos. Os coronéis levaram a sério, trataram nosso projeto como relevância nacional, facilitando ao máximo para a nossa equipe. Lá o caráter foi mesmo de missão. Houve episódios emocionantes. Muitas lembranças boas… No alto Solimões, no Acre… Tocamos para índios, que por sinal também nos deram um espetáculo. Eles não gostam de ganhar, gostam de trocar as coisas. O que a gente pode ver é que o nosso povo é muito bom, gente boa. Se precisasse, tenho certeza, ia juntar gente para empurrar o caminhão… Tomara que esse traço do brasileiro não acabe, tomara que a gente continue a ser assim, sem entrar naquela do salve-se quem puder, cada um por si…Me lembro ainda que numa daquelas cidadezinhas do São Francisco, depois do concerto, veio falar comigo o prefeito do lugar. Um homem do campo, de mãos calejadas da enxada, que me cumprimentou dizendo “maestro, eu quis isso na minha cidade porque sabia que era importante. Só não sabia que era tão bonito!” Esse retorno afetivo é o grande ganho, além de poder conhecer esse Brasil todo de caminhão…
paraty.com.br – Não é à toa que o caminhão é um xodó para você…
Arthur Moreira Lima – É sim. O caminhão é uma gracinha, parece um brinquedo de conto de fadas. Me dedico muito a ele. É uma história que começou em 2003, antes fizemos até alguns concertos tipo piloto. Mas o primeiro circuito foi já no governo Lula, pela Secretaria de Assuntos Estratégicos
paraty.com.br – O Lula chegou a assistir a algum concerto?
Arthur Moreira Lima -Não, o Lula não. Quem gostava de mim era o Brizola (risos e pausa). O Brizola era muito engraçado, eu era o consultor oficial de música para ele. Ele confiava num cara e aquele cara era dele, e ele já não se preocupava com aquele assunto… Isso é ser líder, eu acho (risos), o saber confiar totalmente numa pessoa. Figura extraordinária o Brizola, sempre deu força para os subordinados…
paraty.com.br – O que mantém o projeto Um piano pela estrada?
Arthur Moreira Lima -Contamos com apoio do Governo Federal, não do fundo de cultura não, é da lei Rouanet. Já tivemos vários patrocinadores. Em geral quem está sempre conosco é a Petrobrás, Correios e a Caixa. Vários governos estaduais nos apoiaram também, alguns várias vezes. Aqui estamos tendo o apoio da Prefeitura de Paraty, por meio da secretaria de cultura. É fundamental o apoio de divulgação pelas prefeituras locais. Muitas vezes o nosso secretário, o Manuel, sai com o carro de som pelas cidades. Pelo interior do Brasil é um forte meio de comunicação.
paraty.com.br – Também aqui em Paraty o carro de som tem uma força grande! Conte-nos, maestro, como você garante a qualidade dos instrumentos? Afinar o piano durante as turnês, por exemplo?
Arthur Moreira Lima -Há um afinador que viaja com a gente. As pessoas falam em geral afinação de piano, mas na verdade eu chamaria mais de técnico de piano. Porque não é só afinação. Desafinado o piano sempre fica. Afina, melhora um pouquinho, etc., mas desafina com muita rapidez… Temperatura, vira pra cá, vira pra lá, muito movimento… O piano fica adequado no dia para o concerto, não aquela maravilha de afinação para se gravar um disco, mas fica afinadinho. Só que os grandes defeitos são outros, é uma tecla que fica pegando, tecla que não toca, o pedal que desregula, isso é muito pior do que estar desafinado. Viajamos com dois pianos (Steinway) de cauda e mais um de armário. Ultimamente tenho tocado só no modelo maior, não tem dado problema não… Mas já aconteceu de arrebentar corda no meio do concerto e aí eu fico com ciúmes do afinador, que resolve o problema e acaba mais aplaudido que eu. É quando eu me salvo com aquela piada para a platéia: além do concerto de piano, vocês têm o conserto do piano, tudo de graça (risos).
paraty.com.br – Há um plano B previsto em casos de chuva, mau tempo?
Arthur Moreira Lima -Temos sim. Igreja, teatro, cinema, tínhamos até uma garagem que uma empresa de ônibus cederia, caso chovesse. Me lembro que fizemos uma turnê por Santa Catarina em que choveu quase todo dia de concerto. Mas a gente sempre teve apoio, não deixamos de tocar por causa de chuva. Daqui a pouco começa o concerto em Paraty. E sem chuva!
PROGRAMA DO CONCERTO EM PARATY – UM PIANO NA ESTRADA REAL – ARTHUR MOREIRA LIMAO programa conciliou o romântico em peças clássicas eternas, entre elas: Jesus alegria dos homens, de Bach; de Chopin, Polonaise (heróica) em Lá bemol maior op. 53, e Fantasia – Improviso op. 66; Sonata ao luar, op. 27 n.2, de Beethoven; Trenzinho Caipira e Polichinelo, de Villa-Lobos; e interpretações de peças populares, como Adiós Nonino, de Piazzolla; composições de Garoto e Billy Blanco em arranjos de Radamés Gnattali; Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira; sua fantasia de concerto para Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro; o tango Despertar da montanha, de Eduardo Souto, e ainda a esperada Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro, peça freqüente do repertório do pianista em suas turnês do Um piano pela estrada. |
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