Desde as primeiras articulações para a abertura da 1ª. Flip, nesta histórica cidade de Paraty, RJ, diversos setores de comunicação ventilaram o nome de Millôr Fernandes, enquanto ainda vivo, para ser o homenageado e merecer a vez nos debates, a propósito de sua diferenciada e singular contribuição escrita e ilustrada, nas áreas de jornalismo, literatura, teatro, entre tantas obras de relevo à cultura brasileira.
Escritor talentoso, autodidata na profissão, de humor inteligente, o livre-pensador foi filósofo iconoclasta da mais elevada estirpe; tratou de temas espinhosos em tempos de democracia e em períodos obscuros, das ditaduras, mantendo coerentemente seus princípios éticos. Apesar dos riscos enfrentados, jamais deixou de, com autoridade, manifestar-se avesso a qualquer forma de autoritarismo de direita ou de esquerda.
Millôr teve a dignidade de condenar ideologias subjacentes e explícitas, bem como de ridicularizar os comportamentos acomodados ou alienados, moldados pelas orientações pouco auspiciosas, em tempos de adversidades governamentais.
Encabeçou críticas ácidas aos responsáveis pela censura nos meios de comunicação; sem contar o ataque visceral que expunha contra a vilania dos corruptos de plantão. Os medíocres e aproveitadores do sistema de privilégios, característico da condição de atraso do país, praticado pelos indivíduos próximos ao reino, eram seu alvo preferencial. Fez inúmeras denúncias aos que detonavam, de forma velada, o patrimônio da terrinha vilipendiada.
Foi antes de tudo um leitor infatigável de obras inteiras dos clássicos gregos e romanos. Traduziu várias peças da antiguidade, como Lisístrata, de Aristófanes, cuja encenação, censurada, teria ensejado, entre outras criações de artistas e pensadores corajosos, o fechamento do regime militar sob o império do AI 5, em 13 de dezembro de 1968.
Preferia ler os estrangeiros na língua original. Gostava de fazer traduções, muitas vezes por encomenda, com excelentes adaptações aos contextos histórico-políticos a que se destinavam. Tinha uma biblioteca admirável e, generoso, emprestava livros à mancheia.
Admirava profundamente W. Shakespeare, J. Swift, Rabelais, Rochefoucauld, Molière, M. Proust, Chateaubriand, Nietzsche, Freud, Marx, C.Flaubert, Balzac, Dante, Goethe, Pirandelo, J. Joyce, S. Becket, Bernard Shaw, Dostoievsky e outros grandes do leste europeu. Claro, divertia-se com os criadores das fábulas Esopo e La Fontaine, aos quais parodiou e atualizou nas suas “Fábulas Fabulosas”. Conhecia nossos escritores de todos os tempos, especialmente José de Alencar e Machado de Assis, bem como os Modernistas. Colaborou com o lançamento de escritores do seu tempo, como o poeta Manuel de Barros e tantos que conheceu e estimulou ao ofício.
Nas artes plásticas, experimentou diversas modalidades. Concentrou forças nas charges inesquecíveis e, nos traços, nunca negou a influência do cartunista americano, nascido na Moldávia, Saul Steinberg.
Na casa em que cresci, as pessoas esperavam a revista O Cruzeiro e abriam-na pelas páginas do meio, em que as artes de Millôr exibiam seu melhor humor; hábito que mantive, perseguindo pela vida afora, as publicações para as quais Millôr enviava suas criações semanais.
Desde sempre Millôr Fernandes desferia críticas severas, com humor cortante, contra políticos e governantes, contra as elites acomodadas na manutenção do status-quo, sobretudo as que fingiam comprometimentos em favor de nenhuma transformação de realidades.
Millôr tinha faro para conhecer e escolher grandes obras estrangeiras e estimular adaptações no cenário artístico e teatral brasileiro. Manteve amigos pela vida toda, como Fernando Torres e Fernanda Montenegro, para os quais preparou excelentes traduções e compôs peças de relevo histórico, especialmente no tempos sombrios da ditadura militar.
Durante os anos de doutoramento pela USP, estudei as inesgotáveis contribuições de Millôr Fernandes na imprensa, desde a Revista A Cigarra, O Cruzeiro, Pif-Paf, Manchete, entre outras, Pasquim, Bundas, JB, O Dia, Realidade, Veja, Isto É. O artista nunca deixou de manifestar suas convicções e preferências políticas, embora os proprietários dos meios preferissem a “preservação” discreta dos seus profissionais. Pagou alto preço por sua exposição às claras.
Apresentava-se como “enfim, um escritor sem estilo”, lema jocoso, para reafirmar a habilidade do seu domínio artístico, bem como no uso das paródias, por meio das quais imitava seus companheiros de humor e grandes nomes da história cultural, nos seus emblemáticos exercícios filosófico-literários.
Em conversa com ele, por ocasião da quantidade de lançamentos de espetáculos de riso fácil, considerou os mecanismos da cultura de massa e a história do riso desde tempos imemoriais. Tinha grande respeito por F. Fellini, lembrando detalhes do filme Amarcord.
Disse-me mais de uma vez que queria morrer num dia em que ocorresse a derrubada de algum hipócrita governante, para seu nome sair discretamente na lista do obituário, à última página. Não foi o que ocorreu. Morreu junto aos familiares queridos, foi expressivamente homenageado e sua ausência é lastimada por muitos brasileiros, justamente pela sua reconhecida humanidade.
Para dar um exemplo da objetividade pragmática do artista, lembro-me de que na sua secretária eletrônica havia apenas a gravação, com sua voz grave: “ – FALE OU FAX !”
Bons ventos trazem Millôr Fernandes a Paraty, para a merecida homenagem que a Flip 2014, prestará à sua obra artística. A iniciativa certamente favorecerá reedições de livros admiráveis compostos ao longo de décadas, em sua fértil carreira de escritor, humorista e pensador brasileiro.
Julho 2014,
Glória Maria Cordovani
Doutora em Literatura Brasileira pela USP.
Grande Millor Fernandes, um presente de Deus para nós. Obrigada por partilhar conosco Professora Glória.
Excelente homenagem Glória. Ele era como Einstein dizia:”Sutil mas não malicioso” Amarcord de Fellini, que filme.